Paulo Freire e dialogicidade: reflexões sobre a prática do diálogo na pesquisa em design

addy
4 min readMar 17, 2021

--

Sendo prestigiado em todo o mundo por seu método de educar pessoas, Paulo Freire deixou de legado contribuições nas mais diversas áreas de conhecimento, próprio do caráter emancipatório de seu pensamento.

Tendo contato com seus escritos em “Pedagogia do Oprimido”, mais especificamente, no capítulo intitulado “Dialogicidade: A essência da educação como prática da liberdade”, adotei algumas de suas reflexões para repensar a prática de pesquisa no design que me foi vivenciada até então, uma vez que é inerente à esta a presença do diálogo -manifestado se não verbalmente, visualmente.

Para Freire, o diálogo é um dos caminhos possíveis para se “pronunciar o mundo”, sendo fundamentado antes de tudo na crença nos homens e na esperança nestes, utilizando como princípios para a construção desse diálogo o amor, a confiança e o pensar crítico.

Pra esse texto, ei de me ater a prática do diálogo verbal, no contexto do design de produtos, não fazendo menção a metodologias específicas de design, mas sim, das etapas usuais que se fazem presentes em todas elas -ao menos, as formalmente aceitas.

O “descobrir do problema”

Ao iniciar uma pesquisa em design, o foco em descobrir o problema/enxergar a oportunidade no intuito de atuar em cima deste para desenvolver o produto pretendido se faz presente de tal forma que deixamos de vivenciar a prática do diálogo, da troca em si, direcionando as perguntas por um caminho que atenda o viés pretendido, rompendo com o que Freire chama de pronunciar o mundo:

“Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro. A conquista implícita no diálogo, é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro.”

“como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim?”

Sobre a síntese da Pesquisa

Nessa etapa, o designer pesquisador atua em cima do que foi colhido nas pesquisas iniciais afim de direcionar o projeto para um tema que supostamente solucione o, também suposto, “problema” observado. As pessoas envolvidas na pesquisa inicial geralmente não participam dessa fase. Quanto à isso, ressalto esse trecho:

“Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.”

“como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela?”

Sobre a fase de ideação da solução

Algumas pesquisas pontuais com usuários são de fato o bastante para desencadear num produto/ação? E por que se aproveitar desses supostos problemas pra oferecer, soluções sem ter a participação ativa dos afetados durante todo o processo?

“Não há também diálogo se não há uma intensa fé nos homens, fé no seu poder de fazer e refazer. de criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito de todos os homens.”

“como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deteriorização que devo evitar?”

Sobre a entrega da solução

Ainda no desenvolver do produto, a etapa de implementação costuma resgatar os envolvidos na fase inicial das pesquisas afim de realizar testes de aceitação e de desempenho da solução apresentada (e não, proposta!), sendo assim, uma nova fase de pesquisa se inicia após se ter descartado os indivíduos em algumas das etapas fundamentais para o desenvolvimento da solução. E esse processo vai se repetindo diversas vezes, passando por essas macroetapas, cada vez adaptadas ao novo contexto, até o produto chegar num patamar considerado “ideal”- alguns argumentam que esse patamar não existe, o produto nunca acaba.

Ou seja, uma lógica de fazer design onde, anterior a serem vistos como indivíduos, as pessoas são lidas como consumidores, excluindo assim a capacidade de enxergar o ser como pronunciador, e por consequência, transformador do mundo em que vive.

“Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda. Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista. Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada são os dominadores.”

--

--